Quem não acompanha o blog, sugiro que comece a ler. Além de geniais e aprazíveis, as leituras dão ânimo, geram conhecimento, emoções. E não são muito frequentes, o que não tomará muito tempo, rsrs...
Em especial, quero citar aqui as postagens do jovem diplomata Eduardo Mello. Não sei nada a respeito dele, além do que acompanho no blog hehe. As postagens recentes do diplomata Eduardo falam sobre o tempo em que viveu em Guiné Bissau, as emoções, os desafios, as esperanças; acompanhadas de belas fotos, poesias, descrições. Falo dele em especial aqui porque no dia 11 ele publicou o "final" de sua saga em Guiné, já que, ao que me parece, ele mudará de país. Ainda aguardando a autorização do autor (rsrs), literalmente copiei e colo o texto para vocês lerem, se emocionarem, se arrepiarem, com cada palavra... e sentir aquela inspiração, o sonho, o amor possível de uma carreira encantadora. Acho que essa postagem de Eduardo Mello transparece o que muitos de nós sonhamos com a diplomacia, o que nos move a lutar a cada segundo por alcançar esse objetivo. E, claro, para mim ele é uma grande inspiração.
Tomei a liberdade de por uma música para quem quiser ouvir junto com o texto. Mas é de meu gosto, espero que descubram (ou relembrem) uma música legal. Mas se não gostarem, compreenderei totalmente.
Desfrutem, e inspirem-se.
Abraços e bons estudos.
Nota nº 2
Situação na Guiné-Bissau
04/01/2012
O Governo brasileiro acompanhou com preocupação os acontecimentos ocorridos na Guiné-Bissau, em 26 de dezembro de 2011, que provocaram a morte de duas pessoas.
Como país amigo e na qualidade de Presidente da Configuração da Comissão de Construção da Paz (CCP) para a Guiné-Bissau das Nações Unidas, o Brasil tem se coordenado com as autoridades da Guiné-Bissau para promover reformas internas naquele país e colaborar para a superação de seus desafios político-institucionais.
O Governo brasileiro associa-se à União Africana em sua manifestação de apoio à Guiné-Bissau e de engajamento permanente em acompanhar os esforços que visem a consolidar a paz e a estabilidade, além de promover o desenvolvimento sustentável na Guiné-Bissau.
O Governo brasileiro seguirá acompanhando os desdobramentos da situação na Guiné- Bissau, em coordenação com os demais membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, e tendo presente a ação da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO).
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A revoada dos flamingos tinge de preto, de rosa, a idílica aurora de Orango. O mar escuro, sonolento de amanecer, recorda seus tons de verde com o nascer do sol. O barco, as lembranças, contornam a praia, adentram o r que, serpente, levará ao coração da ilha.
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As semanas anteriores não haviam sido fáceis. Adrenalina, tensão, medo. Saliu avisara, a situação não estava “nada boa”: a Fortaleza de Amura, sob ataque; o paradeiro do Primeiro- Ministro e do Chefe das Forças Armadas, desconhecido; o Presidente incomunicável e sob tratamento médico na França. Saliu dirige com cautela, consulta suas fontes, “kal kii kaminhu mais seguro, há barreiras”. Cruzam tropas, patrulhas militares, em direção a Amura.
Bissau, normalmente sonora no início da manhã, prende a respiração, procura saber o que está ocorrendo. Há muito por fazer: informar Brasília e aguardar instruções; manter o alerta na Embaixada; proteger a Diplomatriz – e ainda a Sogra, que desta vez veio pessoalmente defender a filha. Precisamos aconselhar os brasileiros que aqui estão a serviço, manter o fluxo de informações. “Chefe Edu, Brasília tchomau, ligação de Brasília”, diz a Odete. “Secretário, estão perguntando se a situação é grave”, diz a Glória, sobre os brasileiros residentes que telefonam para nosso Setor Consular.
Ouvem-se tiros e explosões esparsas. Odete ajuda a monitorar o ritmo nervoso das rádios, Sampaio fica de prontidão para o envio de telegramas. Assim como outras representações diplomáticas, a Embaixada é cercada por militares, para impedir tentativas de asilo, como explica em Crioulo o soldado que ostenta um lança-foguetes à porta do Centro Cultural. E quem está no comando? Silencia.
Chega o entardecer, esquecidos almoços e amenidades. O Governo eleito retoma o controle e convoca reunião com o Corpo Diplomático. “Eduzinhu, Mariano sta dja na karru, bu misti bai Palácio di Guvernu, reunion di tudu Imbachadores ku Chanceler gora, kinti-kinti”. Saio apressado, não sem antes roubar-lhe umas castanhas torradas.
O toque de recolher é implantado e permanecerá toda a semana. A tensão, também: mais tiros, mais explosões durante as longas noites, perseguições, algumas mortes. O Chefe da Marinha, Bubo Na Tchuto, é preso sob a acusação de liderar os golpistas. Causam apreensão os boatos de um novo ataque, vindo do interior, e com maior intensidade, para libertar Bubo. Na linha de frente da cobertura jornalística, o blog Ditadura do Consenso.
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Como em 2010, cancelamos os ambiciosos planos de Ano Novo. Restaurantes fitchadus, festas canceladas. A circulação é limitada durante a noite, as Forças Armadas mantém alerta máximo. A Diplomatriz e a Sogra improvisam uma ceia, com bravura e não muito sucesso. Se no ano passado o Reveillon foi solitário na Embaixada, neste ano é com a Sogra em um pequeno quarto de hotel… Mas sejamos otimistas!, estamos no mesmo fuso do Reino Unido, coloca aí na Al-Jazeera English, guria, vamos comemorar com as multidões de Londres e Edimburgo, ânimo!
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O Embaixador antecipa o retorno das férias, o que permite um fim de semana de folga. Tomamos a avioneta para Rubane, sob os receosos protestos da Diplomatriz. A destemida Sogra, por outro lado, sorri ao sobrevoar as ilhas, contempla as compactas palmeiras e diz sentir-se o Indiana Jones.
O estresse, a falta de ar, o nervosismo daqueles dias, tudo desaparece ao despertar no bangalô, ao som da maré. Espreguiço-me na varada à beira d´água, começo a desfrutar do silêncio, do ar puro, quando a Sogra, no bangalô vizinho, grita sucessivos “bons dias”…
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O Presidente Malam Bacai Sanhá falece em Paris. Da etnia mandinga, era considerado fator de estabilidade e respeitado por diferentes setores – políticos, militares, religiosos. Sua morte abre novo foco de instabilidade em espaço “neutralizado” até 2015, quando findava o mandato. Convocam-se eleições, a serem realizadas em até 90 dias, como manda a Constituição. Muitos pressentem nova fase de perigosa confrontação política. A um povo, às vezes, falta mesmo sorte.
É o que se debate no jantar de despedida oferecido pelo Embaixador. Para esse evento, tradicional e quase protocolar, confraternizamos com os mais significativos amigos locais e estrangeiros, feitos por ocasião do trabalho. A lista começa, naturalmente, com João e Sadjá, diplomatas guineenses, colegas intercambistas no Rio Branco. Johann e Cláudia, da África do Sul; Víctor, da União Européia; Luis, de Angola; Luis Vaz Martins, da Liga Guineense de Direitos Humanos; Alexander e Irina, diplomatas russos; Gorka, o basco da Unesco; o Cônsul da Índia; Iancuba Indjai, conselheiro de Defesa da Presidência, ausente por conta da campanha eleitoral.
Como retribuir as palavras do Embaixador, e as amizades tão marcantes quanto fugazes?Por discrição, o Embaixador pouco foi mencionado nestes relatos. Não seria necessário dizer que eles somente foram possíveis por conta do excelente ambiente de trabalho proporcionado pelo Embaixador. Pelo voto de confiança. Pelo modelo de dedicação e companheirisimo, sempre de portas abertas a todos, o Embaixador. Habilidoso na diplomacia, “cartesiano” no proceder, cordial mesmo nas dificuldades, o Embaixador. Chefe e amigo, o Embaixador Jorge Kadri.
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No feriado de Carnaval, despedimo-nos das ilhas Bijagós. O pouso em Bubaque exige prévio rasante, para alertar as crianças e os animais. De lá, duas horas de lancha até Orango, sobressaltados – assustados – com a maré alta, as ondas, as duchas. No limite do arquipélago, pouco habitada, Orango é a maior das ilhas.
O vento, selvagem, revolve o mar. Na tabanka de Etinhoque, o Régulo veste os melhores panos em seus improváveis 86 anos. Mostra-nos a escola, em cujas paredes lê-se “A escola é ser alguém na vida”, “A escola é a igualdade”. Leva-nos ao interior do mausoléu da Rainha Okinka Pampa, recordada por negociar com os portugueses no início do século passado. Meninas, crianças, aparecem e correm em nossa direção, abro os braços, mas todas procuram a Diplomatriz.
Sob mosquiteiros, sonhamos com o dia seguinte. O amanhecer é de flamingos em um banco de areia, alçando voo com a aproximação do barco. Retornamos à costa e ingressamos no rio que leva ao Parque Nacional de Orango, em zigue-zague, rumo ao centro da ilha. Atravessamos manguezais, mato cerrado, percorremos longa trilha na savana, em meio a árvores de onde nos observam ressabiados macacos. Começam a aparecer as marcas de gigantescas pegadas na vegetação.
Alcançamos a outra tabanka da ilha. Em respeito à tradição, pedimos ao Régulo permissão para avistar os animais. Belmiro, o guia, reitera ser baixa temporada, podemos não ver nada, mas os olhos arregalados da Diplomatriz denunciam a enorme expectativa. Faz muito, muito calor, ele pede silêncio e cuidado, “não se mexam, já volto”. Retorna com um largo sorriso, beijando os dedos, com satisfação, sussurro-grito: “venham, VENHAM VER!”
Na lagoa, os famosos hipopótamos de Orango, treze adultos, dois filhotes, observam-nos, pouco amigáveis. Mergulham, bocejam, abrem as enormes bocas em ruídos de ensurdecer. “Djubi, manga di pis-cavalu”, vem quantos hipopótamos, diz Belmiro. Os “peixes-cavalo” de Orango nadam e andam alguns quilômetros até o mar, toda noite, para que o sal tire as sanguessugas. Contemplamos, em silêncio e estado de gracias.
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A lembrança do retorno é aquela que, no futuro, mais se confundirá com o sonho. Agora na maré baixa, levitamos, deslizamos por um tapete verde-azulado, descobrindo as ilhotas que emergem por algumas horas do dia. Nos canais naturais entre Bubaque e Rubane, todos com nomes portugueses, o barco passeia, sinuoso, observado do banquete de frutos do mar que fazem os pelicanos, gaivotas e tantos outros.
Em Bissau, distúrbios de uma manifestação política causam confronto entre militares e policiais. Nessa época, começamos a embalar a mudança, a fazer as malas, a nos despedir. Reunimos no Auditório do Centro Cultural funcionários e amigos da Embaixada, dos projetos, das comunidades brasileira e guineense.
Entre discursos e agradecimentos, Claudiany avisa que a Suzana, funcionária do Centro, lerá carta dos funcionários do Centro, para a Diplomatriz. À medida que avança a leitura, ela começa a chorar, a chorar a cantos. Incha o rosto, soluça, chora descontroladamente, até que a retiro e levo-a para o toalete. Lá, com alegria, com tristeza, sente o peso do tempo, sente que naquele momento toda a experiência africana, pouco a pouco acumulada, começa a virar memória.
A Diplomatriz partiu no início de março, findada sua licença de trabalho. Levou, como nossa última lembrança, o show de Manecas Costa no Centro Cultural Francês, onde o auditório repleto cantou em coro “n` misti vivi”, “quero viver” (http://www.youtube.com/watch?v=z03Z6JBi0JU). A cada acorde, a sensação de que a saudade destes dias nunca passará. Nadar sob as centenárias mangueiras no fim de tarde. Ela, aprendendo “Bethena” ao piano. A cozinha improvisada, sinfonia de barulhinhos, de sons apaixonados em panelas e frituras, cheiros e temperos, com o “bis” na lavagem-malabarismo no chuveiro. A devoção ao Centro Cultural, a vontade de querer ajudar a todos. A dor de quem se ressente mais das injustiças contra o outro. A Diplomatriz partiu no início de março.
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A cidade passou a viver o clima das eleições. Comícios, músicas de apoio dos principais grupos, discussões sobre o uso da máquina estatal e o financiamento das campanhas. O processo é organizado com apoio da comunidade internacional e coordenado pelo PNUD. A CPLP contribui com técnicos, logística e material de votação, fornecidos por Brasil, Angola e Portugal, respectivamente.
É de esperança o domingo 19 de março de 2012. Romântico eleitoral, passeio pelas ruas e testemunho a vibração das mesas de votação nas esquinas de Bissau Velho. Os cidadãos comemoram, vaiam e fiscalizam a contagem dos votos. As projeções iniciais apontam para segundo turno, e a lisura do
sufrágio é confirmada por todas as missões de observadores – União Africana, CPLP, União Européia, Reino Unido. Cinco candidatos, entretanto, convocam coletiva de imprensa para anunciar que não aceitarão os resultados – quaisquer que sejam.
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Último dia. Desperto, mas não levanto, como se pudesse adiar o início da manhã. Das tantas vidas da carreira, sofro pela iminência da primeira morte. O tempo transcorre a contragosto, ao ritmo de conversas com hora marcada. As últimas brincadeiras com Sampaio, com João, companheiro de todas as horas. Recolho as coisas da sala, desligo o ar condicionado, fecho a janela, ao som de Basimanyana, de Vusi Mahasela. Despeço-me dos funcionários e do Embaixador, preparo-me para partir.
Não, não esqueci da Odete, nha mamé guinensi, minha mãe guineense. Na verdade, foi ela quem se despediu, bem mais cedo. Eu vinha ensaiando todo um discurso, mas Odete entrou às pressas na sala, presenteou-me com um pano de pintche do Amílcar, que decorará futuras casas. “Eduzinhu, nha codé, n` ka gosta di dispidida, ami triste tchiu, misti bai, Deus obrigadu pa tudu, tudo de bom pra você”, disse, sem olhar. Sem dar chance para resposta, parte decidida, secando as lágrimas com as longas e finas mãos.
Agradeço aos funcionários do hotel, retenho os espaços do quarto, vazio há alguns dias. Victor e Gorka impedem que a espera pelo voo seja demorada, e convidam para uma última cerveja no Bistrô do belga – ánimo, hombre! É lá que me busca Saliu Sabi Sillá. Até o aeroporto, da sala de embarque para o avião, não há mais horas, são todos segundos. Na poltrona ao lado, última das saudáveis coincidências, senta-se Manecas Costa e conta a origem de “Nha Mamé”.
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No dia seguinte, passeio pela feira da Naschmarkt, em Viena, onde se vendem algumas peças de artesanato africano. O ar é de primavera, o ambiente é de absoluta leveza, de absoluta disparidade. Como foi possível viver tantos anos sem conhecer a África, a Guiné? Repete-se a recordação da decolagem rumo a Lisboa, Bissau distanciando-se com suas poucas luzes, que hoje bastam para identificar desenhos, ilhas, sotaques. E a recordação daquele passo, o último passo antes de entrar no avião, quando a derradeira brisa de Bissau acariciou-me a vida.
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